No primeiro turno das eleições presidenciais no Brasil, em 2014, a candidata do Partido dos Trabalhadores, Dilma Vana Roussef, ultrapassou com larga vantagem o candidato adversário Aécio Neves, do Partido da Social Democracia Brasileira, na preferência do eleitorado da região Nordeste do país. Esse fato foi intensamente destacado e explorado pela grande mídia, monopolizada por algumas poucas e milionárias famílias.
Estava assim dado o mote para o início de uma campanha de ataque aos eleitores da região Nordeste, sobretudo através da internet. Nas redes, ficou exposta a não aceitação do resultado de uma eleição democrática, e se espalharam manifestações tipicamente fascistas. O preconceito regional, que no fundo é classista e racista, foi insuflado por figuras públicas como Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da República e liderança do PSDB. Em entrevista concedida já no dia seguinte à realização do primerio turno das eleições, ele declarou: “ O PT está fincado nos menos informados, que coincide de ser os mais pobres. Não é porque são pobres que apóiam o PT, é porque são menos informados.” Deslegitimava assim o resultado eleitoral.
A desqualificação de eleitores no Brasil tem uma longa história, país que tenta, a duras penas e com grandes interrupções temporais, como a iniciada em 2016, construir e consolidar um Estado Democrático de Direito. Quais as principais etapas dessa história?
Após 1500, quando a Coroa portuguesa decidiu colonizar o que viria a ser o Brasil, passou a conceder imensas extensões de terra – as sesmarias – àqueles que tivessem os grandes capitais necessários para explorá-las. Mas essas terras não estavam vazias, despovoadas. E assim, esses mesmos “sesmeiros”, e seus descendentes, foram designados para compor as forças armadas na Colônia, cujo objetivo era combater a resistência da população nativa à conquista de seus territórios, garantindo simultaneamente o fornecimento de mão-de-obra escrava indígena. No processo colonizador, portanto, a formação de grandes domínios rurais e o poder das armas caminharam lado a lado, e de forma muito eficaz: o sistema sesmarial durou quase 300 anos, e a escravidão indígena permaneceu por mais de 200 anos, convivendo um longo período com a escravidão africana.
À medida que a colonização ía se fixando e consolidando, a vida político- administrativa se estruturava. Dessa forma, em cada vila ou cidade existia um Conselho da Câmara de Vereadores, o chamado “Senado da Câmara”, que constituía a base da administração colonial. A ele competia: indicar os nomes para os postos de comando das “Ordenanças” (a força militar de base local); exercer a justiça (escolhendo um juiz entre seus membros) e decidir questões como a construção de obras públicas, os preços de mercadorias e a remuneração de diferentes ofícios, como ferreiro, sapateiro, canoeiro, etc.
Como eram escolhidos os “vereadores” do Senado da Câmara? Somente os auto- denominados “homens bons” podiam votar ou ser votados, o “povo qualificado”: fundamentalmente os senhores de terras e escravos, que professassem a religião católica romana e que não tivessem nenhuma “mancha de sangue” de negros, judeus ou mouros, como eram chamados os muçulmanos.
Concentrando a riqueza, a autoridade e o prestígio, essa “nobreza da terra” detinha o poder de fato, no período colonial, especialmente quando se considera a vastidão do território, a dispersão do povoamento e a grande distância da metrópole portuguesa. Desse poder estava excluído todo o restante da população colonial, que não era composta só da grande maioria de homens e mulheres escravizados, mas também de homens livres pobres.
Proclamada a independência em 1822, D. Pedro I convocou uma Assembléia Constituinte para elaborar o projeto da primeira Constituição da nova nação. Não satisfeito com o resultado, que limitava seus poderes, ele dissolveu essa Assembléia em 1823, sob a ameaça das armas. Um ano depois, impõs uma Constituição ao Brasil, que instituía, além dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, o Poder Moderador, um reforço a seu próprio poder como Imperador.
O monopólio do poder político pelos grandes proprietários rurais do Brasil, herdado do período colonial, ficou garantido por todo o período do Império: a Constituição de 1824, determinava que só tinham direito de participar das eleições, como eleitores ou como candidatos a vereador, deputado e senador, os que tivessem uma renda mínima anual, que era previamente determinada pela própria Constituição. As eleições seriam indiretas, escolhendo-se primeiro os que iriam eleger os vereadores, deputados e senadores. A renda mínima inicial, ou seja, para os eleitores primários, era equivalente ao valor de 150 alqueires de farinha de mandioca, daí o nome popular de “Constituição da Mandioca”.
Esse mesmo critério excludente, com base na renda, estabalecido para limitar o direito de participação no poder político, foi adotado para a formação da Guarda Nacional. Criada em 1831, como parte da organização do Estado Nacional, pós-independência, em substituição às antigas “Ordenanças”, essa Guarda tinha como sua base de atuação, o município. Durante o período imperial, ela teve um importante papel no combate às inúmeras insurreições, movimentos quilombolas e rebeliões ocorridas no século XIX.
Internamente a cada província, hoje Estado, não houve mudanças no monopólio do poder. Os presidentes de província eram nomeados pelo governo central, mas os deputados das Assembléias Provinciais, que elaboravam as leis – sobre impostos, obras, instrução, polícia e empregos públicos -, eram eleitos localmente. Esse cargos permaneceram nas mãos de algumas poucas famílias por província, durante o Império, originando as oligarquias locais. E em cada vila ou cidade de província, as Câmaras de Vereadores continuaram sob o controle dos descendentes dos “homens bons” do período colonial.
No decorrer do Império, a cidadania política seria cada vez mais restringida. Assim, em 1846, uma lei determinou que o valor da renda mínima exigida para participar do processo eleitoral passaria a ser calculada em prata, ao invés de alqueire de farinha de mandioca, o que, na prática, dobrou aquele valor.
Mas o golpe maior ainda viria. Após a extinção do tráfico negreiro, em 1850, e a decretação da Lei do Ventre Livre, em 1871, o que estava no horizonte do país era a existência de um enorme contingente de ex-escravos. Eles se somariam àquele já grande número de homens livre pobres, todos eles potenciais sujeitos ativos na luta pela ampliação de direitos do povo. Nesse contexto foi decretada a Lei Saraiva, de 1881, defendida por proprietários rurais, que proibiu o voto do analfabeto. Dessa forama, excluía-se, preventivamente, a esmagadora maioria da população brasileira dos direitos políticos, no pós-abolição da escravidão, abolição que ocorreria sete anos depois. Além disso, a lei de 1881 tornou o voto voluntário e exigiu comprovação documental rigorosa da renda necessária para poder eleger e ser eleito.
Com a derrubada da Monarquia e a implantação da República, foi promulgada a primeira Constituição republicana, em 1891, que estabeleceu o sufrágio amplo e geral para os maiores de 21 anos, mas manteve a exclusão dos analfabetos e das mulheres do direito à cidadania política. Mudava-se assim o sistema de governo, mas a nação sem povo não só permanecia como se consolidava.
O Brasil era então um país ainda predominantemente agrário. O eleitorado rural, composto em sua maioria pelos trabalhadores do campo, era facilmente manipulado pelos grandes proprietários de terras. Na época das eleições, e através do que ficou conhecido como “voto de cabresto”, o “coronel” arregimentava, financiava e controlava em seu município o voto dos eleitores que viviam sob seu domínio e dele dependiam – seu “curral eleitoral”.
Em 1904, a promulgação da Lei Rosa e Silva favoreceu essa manipulação. Por um lado, ela determinou que a comissão responsável pelo alistamento de eleitores, decidindo portanto quem podia votar, seria formada pelos quatro maiores proprietários de cada município. Por outro lado, determinou que o voto secreto seria facultativo. Em decorrência, a fraude foi a alma desse sistema eleitoral, conhecido como “eleição a bico de pena”.
Os “coronéis” em seus “currais eleitorais” garantiam: a permanência de uma oligarquia no governo estadual, a vitória dos candidatos a deputado e senador indicados por essa oligarquia e a eleição do presidente da República, cargo ocupado ora por um paulista, ora por um mineiro, na “política do café-com-leite”, pactuada entre as elites agrárias brasileiras. Qual a recompensa dos “coronéis”? empregos e verbas públicas para o seu município ou zona de influência, o que lhes garantia poder e prestígio. Nessa troca de favores, chamada de “política de clientela”, bens públicos foram apropriados por indivíduos, famílias ou grupos.
Esse grande pacto entre as oligarquias no Brasil, no qual as elites de São Paulo e Minas Gerais detinham a hegemonia, foi abalado pela chamada “Revolução de 1930”, que levou Getúlio Vargas ao poder. A Constituição Republicana de 1891 foi revogada e o Congresso Nacional dissolvido. Mas, dois anos depois, Vargas promulgou o Código Eleitoral de 1932, que deu o direito de voto à mulher, estabeleceu o voto secreto e criou a Justiça Eleitoral no Brasil. A interdição do voto do analfabeto, porém, permaneceu, e foi confirmada pela Constituição promulgada em 1934. Três anos depois, através de um golpe de Estado, Vargas revogou o Código Eleitoral, fechou o Congresso Nacional e extinguiu os partidos políticos, impondo à nação a Constituição de 1937.
Durante todo o período da “Era Vargas” (1930-1945) não houve mudanças nas estruturas de poder local, onde se dava a prática do exercício do voto. Havia um sistema de poder solida e secularmente estabelecido, cujas bases nos municípios, controladas pelos grandes proprietários de terras, permaneceram intocadas.
Mas o processo de industrialização e urbanização avançavam no Brasil e, consequentemente, a estrutura social brasileira se tornava mais complexa, com o crescimento das camadas médias urbanas, da burguesia industrial e do operariado fabril. Novos atores políticos, portanto, entravam em cena, sobretudo nos maiores centros urbanos do país.
Além disso, com o fim do nazifascismo na Europa, uma onda democrática varreu a América Latina. Getúlio Vargas, pressionado por fatores externos e internos, iniciou a redemocratização do país convocando eleições presidenciais, mas foi deposto do poder pelos militares, em 1945. Nesse mesmo ano ocorreram eleições para a presidência da República e para uma Assembléia Nacional Constituinte, que seria largamente dominada pelas forças conservadoras do país. Um ano depois foi promulgada a Constituição de 1946, que restabeleceu eleições diretas, mas negou o voto aos analfabetos.
No processo de redemocratização, essas forças conservadoras do país se reorganizaram, alinhando-se aos Estados Unidos da América. Um dos resultados foi a cassação pela Justiça Eleitoral, no ano de 1947, do registro do Partido Comunista do Brasil (Partido Comunista Brasileiro a partir de 1960) e a intervenção federal em dezenas de sindicatos. Um ano depois, era a vez da cassação dos mandatos de senadores, deputados federais e estaduais e vereadores eleitos por esse partido.
Simultaneamente, essas mesmas forças foram construindo o conceito de “populismo”: sob a alegação de que o “o povo não sabia votar” condenavam como “demagógicas” todas as lideranças que, com base sobretudo no apoio popular dos centros urbanos, contrariavam os interesses da classe dominante brasileira a seus aliados externos.
Nos anos que se estenderam até 1964, as camadas populares iriam ampliar sua participação na luta política, especialmente o operariado, via sindicalização, utilizando a greve como sua principal ferramenta. O operariado se fortalecia, assim, como sujeito histórico. A convergência da mobilização popular com o avanço do governo de presidente João Goular na direção das “Reformas de Base”, entre elas a reforma agrária e a reforma política, seria interrompida pelo golpe civil-militar de 1964, que teve o ostensivo apoio dos Estados Unidos da América do Norte.
Os anos da ditadura militar caracterizaram-se pelo crescimento contínuo da repressão aos opositores do regime e pelo cerceamento dos direitos civis e políticos da população. A Constituição de 1967, imposta pelo governo militar, estabeleceu a eleição indireta para a presidência. Um ano depois, o Ato Institucional n. 5 (AI-5) fechou o Congresso Nacional, decretou a intervenção nos Estados e municípios, cassou mandatos parlamentares, estabeleceu a censura prévia e a pena de morte. A perseguição, prisão, tortura e assassinato de lideranças populares e de esquerda recrudesceu. Em 1969, uma Junta Militar elaborou uma nova Constituição, ainda mais repressiva e autoritária.
No ano de 1974, o regime militar começaria a dar os primeiros sinais na direção de mudanças políticas, liberando a realização de eleições para o Congresso Nacional e para os governos estaduais. Nessas eleições os candidatos do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), único partido de oposição à ditadura consentido, obtiveram expressiva vitória.
A pressão da opinião pública, sobretudo através de organizações da então chamada “sociedade civil”, o recrudescimento das greves operárias, a rearticulação do movimento sindical, com novas lideranças como Luís Inácio Lula da Silva, foram fundamentais para a queda do regime militar.
O país havia passado por uma grande mudança no período compreendido entre 1950 e 1980: a inversão da relação campo/cidade. A população brasileira, que em 1950 era predominantemente rural, em 1980 já era predominantemente urbana, pois o crescimento do parque industrial, concentrado na região Sudeste, gerou um grande êxodo rural. A pobreza no campo expulsou os trabalhadores e, como consequência, entre 1950 e 1980, o número de operários do Brasil cresceu cerca de 500%, de acordo com o IBGE.
Em 1984, a campanha das “Diretas já”, exigindo eleições diretas para a presidência da República, ganhou as ruas. Na grande mobilização popular então ocorrida, o Partido dos Trabalhadores (PT), fundado em 1980, teve um papel essencial na incorporação da classe operária ao debate político, o que foi facilitado pela fundação de uma nova central sindical, a Central Única dos Trabalhadores (CUT), em 1983.
No processo de redemocratização do país, a promulgação da Constituição de 1988, a denominada “Constituição Cidadã”, foi um grande marco ao garantir, de forma inovadora, não apenas os direitos políticos, mas também os direitos civis e sociais de cada brasileiro e brasileira. No seu artigo 14, ela determina que “a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos”, estabelecendo o voto obrigatórios para os maiores de 18 anos. Pela primeira vez na história republicana do Brasil, foi concedido o direito de voto ao analfabeto, sendo-lhe facultativo seu exercício. O presidencialismo, como sistema de governo, foi mantido na Constituição de 1988, e confirmado por um plebiscito realizado em 1993.
O golpe contra a democracia no país, consolidado em 2016, com a deposição de uma presidenta eleita com 54.501.118 milhões de votos, avança na direção da imposição do parlamentarismo e do voto facultativo. Mais uma uma vez em nossa história, a participação popular na vida política da nação é limitada ou interrompida.
A luta pela manutenção de todos os direitos garantidos na Constituição de 1988 e em defesa do Estado Democrático de Direito é o caminho a seguir na difícil construção histórica da cidadania no Brasil.
Denise Mattos Monteiro
Historiadora e professora aposentada da UFRN
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