Uma das características da sociedade brasileira é a arrogância e a prepotência presentes no comportamento de grande parte de sua classe dominante, mas também no comportamento daqueles que, não pertencendo a essa classe, gostam de se considerar como parte da “elite” do país.
O retrato mais acabado desse comportamento está contido no uso da malfadada expressão “você sabe com quem está falando?” Pronunciada em situações as mais diversas, mas sobretudo naquelas em que um vislumbre de revolta “dos de baixo” se apresenta, essa frase enfatiza a desigualdade social, naturalizando-a, e reforça o autoritarismo político. Ela tem por finalidade última lembrar àquele que a ouve o quão inferior ele é ao que a pronuncia. E, evidentemente, tem servido para garantir a muitos dessa “elite” ampliada impunidade de seus crimes perante a lei, garantida por advogados muito bem pagos.
Essa, assim como outras características das relações sociais no Brasil, é mais bem compreendida quando conhecemos suas origens históricas, em outras palavras, quando consideramos nosso passado escravista. A arrogância e a prepotência são legados de uma sociedade que esteve baseada na presença de senhores e escravos por mais de 300 anos. A abolição da escravidão indígena, em 1755, e da escravidão negra, em 1888, não aboliu a mentalidade correspondente a essa estratificação social, pois, em diferentes graus e contextos, ela permaneceu e permanece ainda entre nós. A depreciação do trabalho braçal em contraposição à valorização da figura do “doutor” com privilégios garantidos, por exemplo, é uma de suas faces.
Nas diferentes fontes históricas utilizadas pelos historiadores, podemos encontrar registros que estabelecem essa relação passado-presente. Uma dessas fontes são os relatos deixados pelos viajantes-cronistas estrangeiros que estiveram no Brasil durante o século XIX. Quem foram eles?
Após a abertura dos portos brasileiros em 1808, começaram a visitar o Brasil homens e mulheres curiosos sobre a natureza e os costumes do país. Vários deles escreveram suas observações sobre nossa vida econômica, política, social e cultural. Essas anotações de viagem foram transformadas em livros em seus países de origem, no decorrer do século XIX, com grande sucesso entre um público ávido por conhecer a vida em países “exóticos”.
Entre esses viajantes-cronistas destaca-se Henry Koster, pela agudeza do olhar sobre o país que ele viu. Nascido numa família inglesa, ele chegou ao Recife em 1809, com 25 anos de idade, buscando a cura para sua tuberculose. No ano seguinte fez uma longa viagem a cavalo até Fortaleza, percorrendo as capitanias da Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Suas anotações viraram um livro publicado em Londres, em 1816, sob o título “Travels in Brazil”, logo traduzido para outros idiomas.
Das várias edições de seu livro traduzido para o português, com o título “Viagens ao Nordeste do Brasil”, utilizamos aqui a 11ª. edição publicada pela Fundação Joaquim Nabuco e Editora Massangana, de Recife, em 2002.
Henry Koster escreveu:
O último Governador, Amaro Joaquim, levou a Capitania [da Paraíba] a uma boa ordem, graças à necessária severidade. Prevalecia uma tradição das pessoas passearem à noite pela cidade, com imensos capotes e crepes no rosto, ocultando tudo, e se entregarem a práticas irregulares. O Governador, não podendo chegar a saber quem eram esses indivíduos, deu ordens para que a patrulha prendesse quem encontrasse assim vestido. A ordem foi executada e, no dia seguinte, encontrava-se no quartel um dos principais moradores. Um homem chamado Nogueira, filho de uma negra ou mulata, com um dos primeiros homens da Capitania, era temidíssimo pela sua audaciosa conduta passada. Carregava as filhas da casa dos pais, pessoas veneradas na Capitania, matando os amigos ou parentes que se opunham aos seus atrevimentos. O homem fora finalmente preso. Amaro Joaquim queria fazê-lo executar, mas percebendo as dificuldades criadas pela família que intercedia, mandou que o açoitassem. Nogueira disse que era meio fidalgo, homem nobre, e essa punição não lhe podia ser aplicada. O Governador então ordenou que só lhe fosse surrado um lado do corpo, para que o lado fidalgo não sofresse, devendo Nogueira indicar qual era o seu costado aristocrático. E, castigado dessa
maneira, depois de haver permanecido muito tempo na prisão, foi desterrado, por toda a vida, para Angola. ( volume 1, p. 133-134)
[No sertão] A administração da justiça é, geralmente falando, muito mal distribuída. Muitos crimes obtém impunidade mediante o pagamento de uma soma de dinheiro. Um inocente é punido se interessar a um rico fazendeiro, enquanto o assassino escapará se tiver proteção de um patrão poderoso. (volume 1, p. 224)
Num país atacado pela terrível moléstia da escravidão, a crueldade é frequente, e conquanto a punição das culpas cometidas contra o senhor seja geral e imediata, e proporcionada ao nível dos interesses do superior, é difícil conseguir-se o castigo de grandes crimes contra a coletividade. É do interesse dos amos ocultar às autoridades superiores as ações dos seus escravos que possam fazê-los perder seus serviços. Há exemplo em que a própria lei é desviada da retidão da justiça a fim de não sofrer o amo a execução ou desterro do escravo. Aquele que possui os benefícios da riqueza […] guarda silêncio no que concerne aos vizinhos de sua propriedade, esperando que pratiquem o mesmo ao seu respeito quando for necessário. Mas os crimes cometidos pelos escravos, com ou sem o conhecimento dos amos, não são as únicas más ações que essa gente haja perpetrado. O próprio amo, quando não tem coragem de vingar-se em suas questões, pode ordenar que esse fim seja realizado por um dos miseráveis indivíduos que ele governa. Os exemplos são vários. (vol. 2, p. 678-679)
A publicação em Londres desse livro de Henry Koster completa duzentos anos em 2016 e, no entanto, encontramos atualidade nas situações que ele descreve. Isso demonstra como a “elite” brasileira tem resistido a transformações na estrutura econômica, social e política do país e quantos são ainda os combates a serem travados com as forças conservadoras no Brasil
Denise Mattos Monteiro
Historiadora e professora aposentada da UFRN
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