rosaA primeira de todas: nunca existiu nem existe historicamente um Nordeste

Leitores/Consultores: Maria de Fátima Rodrigues – Departamento de Geociências/UFPB

Ângelo Emílio da Silva Pessoa – Departamento de História/UFPB

Algumas das representações mais usuais das postagens xenófobas anti-Nordeste e (os) nordestinos, já desde a campanha eleitoral, e intensificadas após a eleição, foram:

  • Visão generalizada do território nordestino como lugar da miséria, da burrice e da ignorância;
  • Visão generalizada de um território onde as pessoas não trabalham, são vagabundas e vivem de Bolsas Família, pagas pelo Sul, Sudeste;
  • Lugar onde os pobres se reproduzem como ratos, fazendo filhos para serem sustentados sem trabalhar;
  • Lugar onde as pessoas vivem mamando nas tetas do Governo;
  • Povo que merece passar fome e seca/sede;
  • “esses nordestinos pardos, bugres, índios, acham que têm moral, cambada de feios”
  • E, culminando: “nordestino não é gente”.

Uma comunidade médica(!) chegou ao ponto de pregar o Holocausto no Nordeste, mediante castrações químicas [http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2014-10-07/comunidade-medica-prega-holocausto-no-nordeste-em-campanha-contra-dilma-na-web.html].

Esse caldo de cultura autoritária e preconceituosa contou até com a colaboração do doutor Fernando Henrique Cardoso, tentando auto-qualificar positivamente o voto tucano e desqualificar o PT. São os habitantes dos grotões os responsáveis pela ascensão do PT, pois segundo FHC, “O PT está fincado nos menos informados, que coincide de ser os mais pobres. Não é porque são pobres que apoiam o PT, é porque são menos informados”, afirmou o ex-presidente. [http://eleicoes.uol.com.br/2014/noticias/2014/10/06/fhc-pt-cresceu-nos-grotoes-porque-tem-voto-dos-pobres-menos-informados.htm]

Muitas pessoas assumiram explicitamente que são preconceituosas. Rogam até pragas: “que nunca mais chova no Nordeste”. E partem para a violência explícita: “esses nordestinos devem ser linchados e mortos”.

E a bandeira do separatismo é arvorada.

Por contraposição a essas representações, explícita ou implicitamente, o Sudeste-Sul é considerado nas representações xenófobas o território do desenvolvimento, o “sul-maravilha”, onde não há seca, lugar de pessoas trabalhadoras (não as nordestinas que aí moram, haja vista as mensagens da tal comunidade médica acima referida), de pessoas mais informadas, mais bonitas, não índios nem pardos nem negros.

Vamos, então, examinar cada uma dessas representações e apontar como expressam um profundo desconhecimento histórico sobre o Nordeste e o Brasil. Começaremos pela representação de que o Nordeste seria um único território – geralmente identificado pela sua porção de território semiárido, eterna “vítima das secas”, ignorando que, até na região na qual se verificam secas periódicas, se formam fortunas devido à concentração de terras, “indústria da seca”, articuladas aos interesses político-econômicos do “sul maravilha” – porque dela derivam (com modificações) as demais representações. Em artigos seguintes, iremos abordar as demais. Este artigo tem uma perspectiva diacrônica mais longa, os demais abordarão o tempo presente, com algumas incursões retrospectivas, quando necessárias.

Nunca existiu historicamente esse Nordeste homogêneo. Um Nordeste.  Assim como nunca existiu historicamente um Sul, um Sudeste, um Centro-Oeste e um Norte. Em cada uma dessas chamadas regiões, há uma enorme diversidade geográfica, histórica, econômica, demográfico-social, cultural. Vamos um pouco mais fundo: essa diversidade vale para cada um dos estados brasileiros. Mais fundo ainda: nem mesmo cada município é homogêneo. Vai, assim, a resposta para aquela sapientíssima parente da minha parenta que, advertida por um internauta que ela não conhecia o Nordeste, disse que conhecia porque … havia passado de carro por alguns lugares da Chapada Diamantina e tinha visto apenas “ruas” (a expressão é dela) cheias de miséria. Queria saber que capacidade de percepção é esta porque eu, que tive oportunidade de, profissionalmente, já ter estado em 21 dos 26 estados brasileiros, não conheço o Brasil. Eu conheço o Pará porque estive em Belém? Anos depois, quando passei por Carajás, em escala para Tocantins, posso dizer que conheço Carajás? Eu, que vivi 36 anos na Paraíba, não posso dizer que a conheço inteiramente.

Vale lembrar que a expressão Nordeste só aparece no imaginário social brasileiro por volta da década de 1910 em diante. Antes disso, havia a expressão Norte, que, desde aproximadamente a década de 1830, designava a maneira como era visto o território da Bahia ao Amazonas. E antes disso ainda, quando aparecem as primeiras percepções sobre os vários territórios do Brasil, usava-se a expressão pátrias locais para designar aquelas partes/lugares que correspondiam, grosso modo, aos territórios das capitanias, depois províncias com a separação política do Brasil.

Essas diferentes percepções/representações são modos de expressar as vivências históricas e tanto são elaboradas por instituições e grupos sociais (Estado, elites políticas, jornalistas, literatos, segmentos populares etc) de dentro de um território quanto de fora dele. Significam tanto uma auto-percepção desses grupos quanto uma alter-percepção, a visão que têm do Outro e a visão que o Outro tem deles (nesse caso, esse Outro passa a ser o Eu do discurso). Este é o jogo das identidades, como assinalamos no primeiro artigo.Portanto, as percepções/representações são sistemas de classificação e (dês)qualificação. Tais percepções podem mudar conforme os contextos históricos, mas os esquemas mentais constituem aquilo que os historiadores chamam “tempo lento” da História, aqueles mais sujeitos a permanências, por contraste a mudanças materiais: para ser mais explícita, podemos construir uma barragem em poucos anos, mas mudar a mentalidade implica em décadas e até séculos, haja vista, por exemplo, a permanência da mentalidade escravocrata em muitos segmentos da sociedade brasileira.

A representação Norte, quando começou a circular no imaginário social, tinha uma tessitura econômico-social identificável e identificadora: um território que, devido ao processo histórico de modernização no país, na 2ª metade do século XIX, estava configurado pela crise açucareira,  depois a algodoeira, acrescida da famosa grande seca de 1877-1879; e que contrastava, por este mesmo processo, com o território chamado  Sul, em que florescia a  economia cafeeira, produto do qual o Brasil vai deter o monopólio mundial até o fim do século.

A representação Nordeste parece (parece, porque faltam pesquisas mais profundas a respeito) ter sido desblocada da expressão Norte a partir da configuração da região da borracha na Amazônia. Continuou a ser uma representação de crise, então mais acentuada com a industrialização em São Paulo e Rio de Janeiro, notadamente (e não na região Sudeste e Sul como um todo), da qual faz parte o deslocamento (e, portanto,perda) de parte da população nordestina para as áreas industrializadas, assim como já houvera anteriormente deslocamentos demográficos de escravos da região açucareira “nordestina” para a área mineradora (século XVIII), a cafeeira (século XIX) e a da borracha (fim do século XIX e início do século XX). É nesse contexto que o discurso sobre o Nordeste pobre ganha evidência e fornece às elites de lá e de cá a matéria-prima para suas articulações, que se expressam em acordos e votações de matérias no Congresso Nacional e que revelam, acima de tudo, interesses de classe e não interesses regionais.

No jogo simbólico das representações sociais, que significa jogo de disputa de poder, o Estado é um dos participantes. Assim, o Estado brasileiro republicano, para consolidar o regime recém-proclamado mediante a formulação da imagem de uma “nação brasileira”, com aplicação concreta no ensino de Geografia, organizou, em 1913, a primeira divisão do território brasileiro em “cinco Brasis”, baseada em critérios físicos e em alguns aspectos sócio-econômicos.  Várias classificações foram estudadas, segundo critérios diversos, [conforme pode ser observado em estudo clássico publicado pela Revista Brasileira de Geografia, de autoria de Fábio Guimarães] até que, durante a ditadura varguista, foi criado o IBGE em 1937, e concretizada uma primeira classificação regional do Brasil para melhor controle do Estado, mapeando a população, os recursos naturais e a economia, para fins de integração dos vários territórios do país e promoção de políticas públicas, no âmbito do projeto estatal nacional-desenvolvimentista, então em processo de configuração. Essa classificação, datada de 1942, baseou-se em critérios naturais (clima, relevo, vegetação e hidrografia): Norte (Território do Acre, Território do Guaporé, Território do Rio Branco, AM, PA, AP); Nordeste (MA, PI, CE, RN, PB, PE, AL); Leste (SE, BA, MG, ES, RJ; Centro-oeste (MT, GO); Sul (SP, PR, SC, RS). Várias outras regionalizações foram efetuadas desde então, com modificações na nomenclatura de algumas regiões e da dimensão de cada uma, mas a representação denominada “Nordeste” permaneceu em todas, passando o seu território a incluir a Bahia e Sergipe, estados desblocados da região Leste, a partir de 1970. Desaparece a representação denominada de “região Leste”, substituída pela representação denominada “região Sudeste”, compreendendo a configuração atual (São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo), portanto São Paulo sendo desblocado da representação denominada “região Sul”. Houve outros desblocamentos nas outras representações regionais, mas não vêm ao caso para esse debate.

Portanto, são sistemas classificatórios que mudam conforme os critérios adotados. Por exemplo, o Polígono das Secas é uma outra classificação, que inclui a parte norte de Minas Gerais. Por serem oficiais do Estado brasileiro, essas nomenclaturas foram sendo incorporadas nos sistemas escolares e, em especial, na mídia impressa, radiofônica e televisiva, e configuradas com outras representações dos vários grupos sociais em disputa do poder simbólico-material. E, assim, foram moldando as mentes da população brasileira.

Para concluir, nenhuma dessas classificações oficiais corresponde à formação geo-histórica do território brasileiro porque são homogeneizantes e não dão conta das profundas diversidades internas a cada dita região. Mais do que isso, tais classificações ainda guardam uma forte marca naturalista-positivista, ignorando os conhecimentos geográficos e históricos disponíveis em nossa sociedade.

É notório que as vivências concretas são muito mais do que essas representações apontam.

A divisão do Brasil em regiões administrativas pode viabilizar o planejamento de ações, programas e políticas públicas por parte do Estado brasileiro, o que tem demorado a ocorrer e, mesmo agora, quando diversas políticas públicas se articulam, essa divisão regional demanda reformulação. Os territórios da cidadania propostos no governo Lula abrem novas perspectivas nesse sentido, buscando integrar políticas públicas em diferentes áreas e possibilitando a troca de experiências e de bens culturais entre territórios similares. Contudo, é preciso tirarmos as mordaças impostas por proposições classificatórias inspiradas em referenciais teórico-metodológicos de base naturalistas, raciais e positivistas para ensejar regionalizações que expressem as demandas da sociedade brasileira. É a valorização de territórios em suas peculiaridades que deve servir de substrato aos debates políticos.

A problemática das classificações regionais precisa avançar nos movimentos sociais, em cujas pautas políticas quase não tem constado. Devido às formas diversificadas de violências materiais e simbólicas impostas à sociedade brasileira, ao longo da sua história, outras bandeiras têm sido priorizadas, que dizem respeito à sobrevivência de etnias e grupos sociais. Os territórios da cidadania poderão recompor e atualizar questões históricas, políticas e socioculturais acumuladas do passado se forem apropriados pela sociedade brasileira na perspectiva enfrentar problemas que estão no âmago de seu processo formativo e que têm sido relegados sistematicamente. Mas eles estão aí, vivos, latentes, e, na presente conjuntura, explodindo, a exemplo dos discursos e atitudes xenófobos.

Conforme buscaremos especificar em suas várias dimensões nos próximos artigos.

Para finalizar, meus enormes agradecimentos a Fátima e Ângelo pelos comentários e sugestões.

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